sábado, fevereiro 19, 2005

Consulta

- Entao bom dia Sr... [olho subtilmente para a sua ficha para ver seu nome] Videira. Faca favor de se sentar.
- Obrigado.
- Importa-se que grave a nossa conversa?
- De maneira nenhuma doutor. - ligo o gravador.
- Como sabe, esta aqui devido as acusacoes de que foi alvo, e para eu tentar ajuda-lo. Certo?
- Sim, doutor, eu sei. Acusam-me de pedofilia.
- Mais ou menos. Sabe que a partir de uma certa idade ja nao se chama pedofilia.
- Isso para mim da-me igual, eh um nome, como qualquer outro.
- Nao eh bem como qualquer outro, este nome tras consigo uma conotacao muito negativa, e serias repercursoes a nivel legal.
- Eu sei.
- Ok. Certamente sabe que tambem ha muita gente que o chama de louco. Gostaria de comecar por lhe fazer uma pergunta, que apesar de parecer riducula, tem de ser colocada... O senhor considera-se em pleno dominio das suas capacidades mentais?
- Sim. Mas se nao tivesse dominio nao teria discernimento suficiente para o perceber.
- Sim, eh verdade, mas tambem creio que nao responderia assim.
- Diga-me, Sr. Videira...
- Pode tratar-me por Manuel.
- Diga-me, Sr. Videira, o que o levou a ter relacoes com 2 raparigas de 15 e uma de 16 anos?
- Talvez o mesmo que o leva a si a ter relacoes com qualquer outra mulher doutor. Voce gosta dela, ela gosta de si. Voce quer faezr algo que nao vai contra a vontade dela, voce faz... Porque voce quer, e porque ela quer...
- Tudo bem Sr. Videira. Mas tem de compreender que nao eh exactamente a mesma coisa. Uma rapariga com 15 ou 16 anos eh menor de idade. Compreenda que o termo "menor de idade" nao eh so um conceito, uma juncao de palavras criadas pelo homem. Menor de idade porque uma pessoa com 15, 16 ou 17 anos ainda nao eh um adulto. E isto porque ainda nao desenvolveu tudo o que tem a desenvolver, quer a nivel mental quer a novel fisico. Claro que nao eh no dia em que fazem 18 anos que todas as mudancas (vamos chamar-lhe assim) tem lugar. Muitas vezes estas mudancas so acabam depois, outras vezes ja acabaram antes.
- Mas vice nao percebe. Eu falava com elas, muito. Nao fiz o que fiz num acesso de espontaneidade. Fi-lo porque vi nelas pessoas maturas, capazes de decidir por si.
- Mas Sr. Videira, elas sao adolescentes, jovens. E voce, que tal como eu, tambem ja foi um, sabe que as decisoes dos adolescentes pautam-se nao por grandes reflexoes, mas por impulsos, num momento querem uma coisa, noutro momento querem outra.
- Sim, tambem eh verdade.
- Por isso poderia ter pensado que, a certa altura, quando percebessem que nenhuma das suas amigas fizera o mesmo, se iriam arrepender.
- Mas elas nao se arrependeram!
- Sim, Sr.Videira, arrependeram-se, e eh por isso que o senhor esta aqui. Nao se arrependeram por ter tido relacoes consigo, mas por terem tido relacoes com uma pessoa muito mais velha...
- Mas voce nao sabe o que eh...
- Como assim?
- Ser eu! Nao sabe como eh ser eu! Voce eh atraente, tem o seu emprego, imagino quanto vai ganhar com esta consulta. E imagino quantas mulheres pode arranjar no segundo em que sai ah rua! Mas eu!... Quando conheco alguma mulher elas desaparecem no instante em que sabem que ainda vivo com a minha mae ou que trabalho como porteiro. Foi por isso que vi nelas, raparigas bonitas, uma oportunidade de me sentir melhor comigo mesmo. E com elas era tao mais facil mentir, porque nao tem a experiencia de VIDA que tinham todas as outras mulheres. Nao conseguiam perceber que um gerente de uma cadeia de restaurantes nao poderia conduzir um Opel Corsa, ou que poderia andar vestido com roupas da feira. Nao pensavam nisso sequer.
- Sim Sr. Videira, mas compreende porque agiu mal? Aproveitou-se desta falta de maturidade de que eu falei, para se sentir melhor consigo mesmo. Compreende onde quero chegar?
- Sim, compreendo. Realmente fiz mal, claro que sim. Sempre o soube no fundo, mas o que disse aqui nesta sala a tentar convence-lo foi o mesmo que disse a mim desde o primeiro momento. Mas, talvez por necessitar de acreditar, foi mais facil convencer-me a mim proprio que a si. E, na minha (nada) inocente ignorancia, acreditei que nunca se descobriria.
- Sr. Videira, creio ter chegado onde queria chegar. Agora lembre-se de tudo o que falamos aqui. Vai ser tudo bastante mais facil na lei para si se assumir desde ja o seu erro, e nao persisitr em afirmar-se inocente ate ao fim. Compreende.
- Sim, doutor, obrigado. - responde, levantando-se e estendendo-me a mao.

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terça-feira, fevereiro 08, 2005

A Mulher do Hospital - Parte XI

[pausa]
- Luis! Ola, tudo bem? - nao percebo se esta feliz por me ouvir, ou se sou eu que quero que esteja e entao me engano.
- Sim, tudo bem. Estava aqui em casa a ler e lembrei-me de ti. Nunca mais ligaste...
- Pois nao... Sabes, nao tenho tido tempo, tenho tido muito trabalho, depois ando cansada, e quando dou por mim o dia acaba.
- Ah, ok pronto. Era so para te dar um beijo e para te dizer que se te apetecer ir tomar cafe um dia destes sabes que estou disponivel.
- Sim eu sei. Ok entao, um dia destes ligo-te. Agora tenho que ir, xau. - e desliga. Consegue fazer-me sentir pior do que aquilo que ja me sentia antes de ligar. Sera que esta a dar-me tampa assim como nao queira coisa? A cortar tudo logo pela raiz? Que cena, sera que nao consegue arranjar uma hora para tomar cafe comigo? Ou pior (mas melhor, porque saberia como estavam as coisas) sera que nao consegue arranjar coragem para me mandar ah merda?
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E se eh mesmo verdade o que disse e nao tem tido tempo? De qualquer maneira, desliguei o telefone e fui dar uma volta. Passei em casa dum amigo e fomos ter com outros ao bar do costume. As conversas eram as mesmas, o sitio era o mesmo, parecia que tudo era o mesmo, e estava estranhamente aborrecido por estar ali. Que me apetecia fazer? Sim, claro, mas, alem de estar com ela? Nada.
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Ate sorria de mim para mim, com a ironia das coisas. Sempre vira este ou aquele, esta ou aquela, que estava desesperado por causa de outra pessoa, arrastavam-se para niveis de inaccao incriveis, e eu nunca percebera como se permitiam isso, porque nao batalhavam, e porque nao conseguiam nao pensar naquilo. Contudo, agora era eu que me aproximava a grande velocidade desse precepicio, desse lado do amor. As voltas que a VIDA da.
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Tive que ir para casa nessa noite.
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Assim o tempo foi passando. Continuava com o mesmo ritmo de VIDA que tinha adquirido fazia pouco tempo. Passava muito tempo em casa, horas frente ao pc, comia muito e devagar (por sorte nao sou do tipo de engordar facilmente), dormia pouco, sonhava com ela, nao ia ah praia fazia um tempao... E ela, claro, ainda sem ligar. E eu, claro, ainda a desesperar.
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Nao falava com amigos. Nem sobre ela nem sobre nada. Queria estar sozinho. Porque? Nao faco a minima ideia. Quando ouvia pessoas que estavam nestas situacoes dizerem que queriam estar sozinhas achava uma estupidez, e que nao fazia sentido nenhum. "Sera Masoquismo?..." - pensava. Bem, masoquismo nao eh, mas tambem nao sei que sera...
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Eis que uma noite, em que consegui sair de mim, observar-me e ganhar algum juizo, em dialogo comigo proprio fiz-me perceber do quao ridiculo estava a ser, e que eu tinha de ser mais forte que isto. Tomei banho, um banho demorado, vesti-me, a roupa que mais gostava, e fui dar uma volta.
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PAM!! Nestes momentos acredito no destino! Tenho de acreditar!...
Estaciono o carro na Praca da Republica e decido ir tomar cafe ah Associacao, pelos velhos tempos de estudante. Entro, sento-me numa mesa no canto saboreando um cafe e quem vejo?... Sim... Ao fundo, a falar sorridente e gesticulando, vejo MJoao, sentada numa mesa, um copo de cerveja nesta, e um rapaz um pouco mais novo que eu, atraente, sentado em sua frente.
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Fico quente. Totalmente quente, sinto o meu sangue pulsar nas veias, se olhasse quase via estas dilatar. Sobe-me uma adrenalina que nao posso descrever. Sinto-me quente, muito quente. Tenho de fazer algo. Levanto-me e dirigo-me a si. Desta vez nao tento mostrar uma cara disto ou daquilo, sera um esforco inglorio e impossivel. Toco-lhe no ombro e MJ roda a cabeca. Ao ver-me, a sua cara de surpresa eh evidente.
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Falo, calmo mas nao muito sorridente.
- Joao, tudo bem? Estou a ver que sempre conseguiste arranjar um espacinho entre o teu trabalho... [continua]

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sexta-feira, fevereiro 04, 2005

Apreciar

- Desculpe, vamos fechar.
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- Desculpe, vamos fechar - acordo da minha, vamos chamar-lhe, submersao literaria. Lia avidamente "O Retrato de Dorian Gray". Entrara na biblioteca pouco passava das 14h e agora eram ja as 18h. Olho o relogio, que de facto confirma que, mais uma vez, quedei-me ate ao final no mesmo sitio de sempre, a biblioteca, com meus amigos, Ulisses, Conde de Monte Cristo, Veronika, e por ai fora.
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Levanto-me, pego no caderno onde gosto de apontar as minhas passagens preferidas, e guardo no meu saco verde escuro. Guardo os oculos e saio. Uma aragem fresca passeia na rua e ao ver-me decide mudar-se para o meu corpo, onde se diverte um pouquinho arrepiando cada pelo. Levanto a gola do casaco e vou para o cafe do costume, onde vou todos os dias quando saio da biblioteca. Pelo caminho cruzo muitos olhares. As pessoas olham para mim porque sou bonito, e aproveito isso para as olhar nos olhos e, por segundos, tentar encontrar a inspiracao que me falta.
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Ao chegar, peco um cafe, abro o meu outro caderno. Cruzo as pernas e tento concentrar-me. Nada. Nada. Nao consigo escrever nada. Que legado sera o meu? Nao consigo nem posso encontrar alguem para constituir familia, nao vejo em plantar uma arvore uma grande coisa, e escrever um livro eh a minha alternativa para deixar alguma coisa neste mundo. O tempo urge e quem sabe se daqui a um ano ainda estou aqui, quem sabe se nao fui ja levado por esta doenca que me consome dia apos dia...
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O cafe chega, e bebo devagar, apreciando cada trago do meu Buondi. Ah minha volta pessoas submersas em suas VIDAS, rindo, falando, lendo... A empregada quase corre dum lado para o outro tentando atender todos os periodos. Estas pessoas que vejo ah minha volta... Ja fui como elas, preocupava-me com isto, com aquilo, coisas sem interesse nenhum, e nao me preocupava com o mais importante. Agora que sei que vou morrer em breve, tal como Veronika, so agora que sei que vou perder algo o consigo apreciar.
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Se o Homem soubesse o quao fragil tudo nesta VIDA eh, seguramente aprendia a rir-se quando um pneu furava, a sorrir quando pisasse uma poca de agua, a apreciar cada segundo desta existencia fugaz.
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Neste momento paro no meu pensamento. Sempre tentei escrever disto, daquilo, que vejo ah minha volta, nunca logrei. Mas nunca pensei em escrever sobre o que vai dentro de mim. Como era, como sou, como percebi que desperdicava algo tao valioso como a VIDA. E quem sabe... Se um dia apenas uma pessoa me ler, e apenas numa pessoa o meu pensamento tiver alguma influencia, ensine, nem que so um pouquinho essa pessoa a apreciar mais a VIDA, acho que ja me dou por contente...

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