domingo, novembro 27, 2005

A Mulher do Metro - Parte VI

Passei os dias seguintes com uma boa disposição fora do comum. Finalmente encontrara alguém que valia a pena! Nem por um segundo pensei que pudesse ter sido outra pessoa a roubar-me a carteira. Qualquer larápio que andava por aqueles lados não tinha metade da qualidade que eu tinha, e eu topava-os a léguas, estivessem vestidos como maltrapilhos ou como executivos. Tinha sido ela, com sua suavidade, subtileza, que num momento de surpresa minha (afinal de contas ela ignorara-me por completo) ma surripiara do meu bolso. Não me preocupei. Dinheiro na carteira tinha algum, mas nada que me fizesse falta, documentos, era só abrir a segunda gaveta de minha mesinha de cabeçeira, e desdobrar-me em múltiplas identidades. Nestes últimos dias, enquanto não reavia a minha carteira chamava-me Dmitri. Que comum, meu Deus!
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Não a tinha visto nestes dias, mas sabia que não era uma casualidade. Ela fazia-o de propósito. Evitava-me para me confundir, sem saber que me confundirira apenas se aparecesse no dia seguinte, como se nada se tivesse passado. Ela podia achar que estava dentro da minha cabeça, jogando com minha mente, mas por mais imprevisível que fosse (e era), eu nunca fui burro. Assim passei umas 3 ou 4 semanas no metro, não todos os dias. Lá palmava umas 4 ou 5 carteiras por dia, e dava para manter a minha VIDA de classe alta. Mais ano menos ano e teria dinheiro suficiente para abrir um negócio noutro país qualquer. Nunca na Rússia. Continuava com a minha lei de não roubar pobres. Na verdade, desde que decidira agir assim, sentia-me bem melhor comigo mesmo.
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Não os julgava pela roupa que vestiam. Apesar de ser um indicador geralmente certo, há sempre algo mais que isso. Para mim, não tanto o olhar, mas a maneira como olham. Um pobre não tem um olhar pobre, olha de forma pobre. Parece estúpido não parece? Não é o olho, ou a expressão que muda de um pobre para um rico. O olhar diz-nos se alguém está triste, alegre, desiludido, se é uma pessoa simples. Por vezes diz se é boa ou má. Mas a maneira como olha à sua volta, de cima para baixo, ou de baixo para cima, com altivez ou não, diz-nos muito mais. Venha quem vier, é a minha teoria, e de pessoas percebo eu. Em que outro sítio que não um metro de Moscovo, o maior do mundo, se vê maior concentração de pessoas, e de todos os tipos? Aliás, tantos tipos que o que mais falta são os de classe média...
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Mais um dia. Ontem não me apeteceu ir "trabalhar". Liguei a uns "amigos" (porque que há tantas aspas na minha VIDA?) anteontem e fui dar uma volta. São Petersburgo, para variar. Passamos lá a noite e cheguei ontem. Foi porreiro. Ando a ficar um bocado farto desta VIDA. Aquela gaja parece que veio mudar um bocado a minha estabilidade... Sinto-me bem na mesma, mas parece que me aborreço mais facilmente... Tenho de ver isto.
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14h, estou no metro. Como estou com pouca paciência tento despachar-me, ainda que me arrisque um bocado e numa hora palmo 4 carteiras. Uma vem vazia, outra mais ou menos e as outras duas bem recheadas. A última que roubei foi ao lado de um polícia. Sei que sou maluco, não se brinca com a polícia moscovita, mas gosto de algum risco por vezes, ainda que esse risco implique ser sovado até mais não por polícias porcos e corruptos.
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Farto-me cedo e venho para casa. 16h, estou no cafeteria em frente ao meu prédio, que exige uma nova pintura. Vejo alguém do outro lado da rua parecido com ela, não ligo, sei que não deve ser. Pago, deixo gorjeta, saio. Atravesso a estrada, baixo a cabeça, pego na chave que me abrirá a porta do prédio. Levanto a cabeça, vejo-a. À minha espera...

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quarta-feira, novembro 09, 2005

A Mulher do Metro - Parte V

Os dias seguintes passaram normalmente. Havia estudado Laura. Apesar de não saber o que fazia, sabia a que horas saía de casa, a que horas apanhava o metro, onde saía. Portanto, sabia como podermo-nos-íamos cruzar. Não fui "trabalhar" nesses dias, preferi ficar por casa, passear pela cidade, sair à noite, arranjar algumas miudas de vez em quando para não dormir sozinho, enfim, aquele ócio, aquele não fazer nada de útil que sempre adorei.
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Não queria cruzar-me com ela logo nos dias seguintes, aí ela ia topar a minha estratégia. Ia deixar passar uns tempos, um mês até, quem sabe, e aí apareceria mais uma vez no metro. Não diria nada, olharia apenas por um segundo com um ar de "conheço esta miuda de algum lado" e viraria a cara. Depois, se meus cálculos estivessem certos, ela viria falar comigo. Senão, era algo que eu necessitava de melhorar.
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Assim, um mês passou. Não estava minimamente nervoso, tinha a situação sob controlo. Acordei, tomei o meu banho matinal enquanto ouvia Audioslave, Out of Exile. Queria algo com potência. Porque sabia que ia encontrar alguém, sem dúvida, cheia dela. Pus o meu perfume, Deep Blue, que contracenaria com seu Deep Red, numa dança de aromas que quem sabe guiaria seu olhar até mim. sorrio, ela podia olhar para mim por muitas razões, mas não seria pelo perfume.
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Olho o espelho. Contemplo a minha face que foge aos padrões tipicamente russos. Dou graças a Deus por isso. Este conservou-me os olhos e cabelo claro, mas atirou-me mais para parecenças suecas, finlandesas, algo assim. E por isso não costuma ser muito difícil voltar acompanhado para casa. Sorrio mais uma vez ao pensar no quanto sou convencido, mas é apenas a verdade. Sempre preferi não ser hipócrita. Porquê termos consciência apenas dos nossos defeitos, se as virtudes são tão mais apelativas? Equilíbrio é a palavra. Sei que sou, provavelmente, não muito boa pessoa, egoísta, egocentrista e muitos outros adjectivos feios. Mas também sei que sou bonito, charmoso, inteligente, estratega, e muitos outros objectivos não tão feios.
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Dirigo-me então para o metro. Já a vi. Bela. Casaco comprido preto até aos pés, cabelo apanhado no cimo da cabeça, aquela cara que bem podia estar numa revista qualquer. Entro na sua carruagem, examino a distribuição dos lugares vagos, e sento-me numa ponta, sabendo que, apesar de ter entrado mais além, acabaria por se sentar perto de mim.
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Assim o faz. Cruzo o olhar com ela passado uns minutos, vejo sua expressão, delicio-me com ela. Diz algo como: "Olha ele ali... O quê? Não reparou em mim?..." - exactamente. Contudo, o tempo passa, e nada mais. Não se levanta para vir ter comigo, não diz nada. Aproxima-se a "nossa" paragem. Levanto-me, dirigo-me para a porta, ela também. A porta abre-se, Laura passa muito perto de mim, chega mesmo a tocar-me, desprepositadamente, suponho, e sai. Nada.
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Acabo por não sair, volto ao lugar, depois de garantir que esta não vai perceber o meu ar de desilusão. Conformo-me, penso que realmente a mulher é algo mais difícil de entender do que parece, mesmo após tantos anos de treino, sorrio, e vou para casa. Não estou triste, e o pouco de desiludido que estava passa rápido. A VIDA ensinou-me a seguir para a frente.
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Saio do metro, cruzo a estrada em frente ao meu prédio, e vou ao café que se encontra no rés-do-chão deste comprar um pack de Marlboro. Apetece-me. Eis que, meto a mão no bolso direito, nada. Esquerdo, nada. Todos, nada! Sorrio, solto mesmo uma gargalhada. A gaja roubou-me a carteira...

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