sábado, outubro 16, 2004

A Mulher do Hospital - Parte I

- Quem me espera?
- Nada de especial, partiu um braco mas ja esta tudo bem, so tens de ajudar a vestir e dizer-lhe os cuidados que tem de ter.
- Ok.
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Vou pelo corredor com a ficha do doente, lendo e procurando se tem alguns pormenores a ter em conta. Joao Saldenha, 26 anos. Imagino um homem novo (eh da minha idade) que se aleijou caindo no passeio a caminho do trabalho. Quando dou por mim, apesar de estar quase a chegar ah divisao onde se encontra, ja estou com grande filme na cabeca, imaginando seu aspecto, teimas, etc. Faco muito isto com nomes que leio aqui e ali. E eh por isso mesmo que, quando abro a porta, sinto que me enganei. Vejo sentada de lado na cama, com as pernas a balancar, uma mulher de idade talvez entre os 25-30, de pele clara, cabelo louro muito clarinho, e um olhar que me perturba, entra dentro de mim.
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- Desculpe, devo ter-me enganado.
Leio a ficha de novo.
Ela, nao sei porque, ri, muito divertida.
Leio a ficha de novo e preparo-me para chamar alguem quando finalmente fala. Tem a voz sedutoramente rouca.
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- Nao, deixe estar, sou mesmo eu. Maria Joao, prazer. - eh aqui que percebo tudo. Esboco um sorriso como quem diz "bem me parecia que era isso", apesar de nunca me ter parecido que era isso.
- Sim, claro... Por isso estava tao divertida!... - digo, um pouco envergonhado.
- Sim, sabe, eu faco isto de proposito, sempre quer posso brincar com o meu nome! Acredite, a cara que voce fez, depois de ler a ficha 10 vezes eh impagavel.
- Bem, mas o que tenho para lhe dizer eh um pouco custoso.
- Ha? Como assim?
- Bem, sofreu danos talvez irreparaveis nos nervos, e eh muito possivel que no prazo de 2 dias perca, talvez para sempre, 75% das funcionalidades do braco... - a cara dela foi de um sorriso aberto, para um olhar de surpresa e tristeza. Eu estava consciente que estava a passar por cima de nao sei quantos milhares de regras de etica no trabalho de um enfermeiro, mas quis alongar mais uns segundos...
- Meu Deus, e agora?...
- Desculpe, fizemos tudo o que podiamos. - nao aguentei mais e rebentei a rir! Quando se apercebeu que tinha estado a gozar, uma cara de seria e chateada foi seguida de uma sonora gargalhada. Rimo-nos muito e aproximei-me um pouco.
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Eis que, talvez ouvindo o barulho e querendo indagar seu significado, chega o director...
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- Gonzaga, que se passa? - o meu sangue gelou. Dizer este tipo de coisas a um paciente, nem no dia 1 de Abril, constituia um violar de muito do que nos fora ensinado. Manter distancia, nunca mentir, mesmo que por brincadeira...
- Desculpe, eu tinha contado uma anedota muito engracada ao Sr.Gonzaga, e ele teve de se rir. Quer ouvir tambem? - assim me salvou. Havia um tom divertido e desafiador em sua voz. O chefe disse que nao, e saiu.
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Foi assim que a conheci... [continua]

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